Era seu último dia de trabalho. Descia a mesma rua que
descera por tantos anos, no mesmo trajeto que tecia desde o primeiro dia. Via
as mesmas lojas, os mesmos camelôs, ouvia os mesmos gritos de vendedores e
sentia os mesmos cheiros das frutas frescas da mercearia da esquina. Via os
mesmos trabalhadores indo apressados para seus serviços, com suas maletas na
mão, relógios no pulso e rostos de preocupação. Descia a rua e olhava para o
céu, olhava pelo entorno, reparando pela primeira vez que em cima das tantas
lojas daquela rua existiam sobradinhos, idênticos, apertados um entre o outro,
cada um de uma cor. A mercearia da esquina se localizava numa construção com
cara de muito antiga,e era curioso ali ter se instalado uma venda de frutas.
Pensou que outrora ali poderia ter sido um glorioso salão de festas, justa tal
extensão, onde tocavam bandas de jazz e cantoras soltavam sua voz, por trás de
vestidos justos e brilhantes. Ao lado da mercearia, reparou numa loja de móveis
usados, onde haviam criadinhos de madeira surrados, com belos puxadores. Pensou
nos casarões das antigas famílias aristocratas, senhores de terras no Brasil,
em que a dama escolhera a mobília em uma viagem pelo Velho Continente que
virara noticia por entre todas as famílias brasileiras. Pensou em como uma
viagem dessas era literalmente coisa fina no passado. Imaginou seus serviçais
negros presos em roupas brancas já gastas limpando o criadinho onde a Senhora
guardava suas jóias, que herdara de sua mãe. Atravessou a rua, deixando para
trás tantas memórias que acabara de criar. Caminhava pela beira do rio, que
julgou mais cheio e imponente que jamais vira, sentindo a brisa quente do verão
em seu rosto. Sentiu uma folha cair em seu ombro, e lançou seu último olhar
para a quaresmeira frondosa que guarnecia a beira do rio. O reflexo do sol na
água. O verde da vegetação da várzea. Nunca este trajeto lhe trouxera tantas
sensações. Quando finalmente chegou lá, via em cada rosto que julgava
indiferente, o olhar da saudade e da perda, e sentia vontade de abraçar todos,
até os funcionários que antes lhe passavam desapercebidos. Sentiu uma
nostalgia, mas uma nostalgia de algo que ainda nem mesmo se acabara. Sentiu
aquela saudade por antecipação, de quando se sabe o que vai acontecer, e acaba
sentindo como se já tivesse acontecido. Nunca aquela caminhada lhe aflorou
tantos sentimentos. Nunca aquelas pessoas foram tão unicamente importantes.
Nunca aquele local foi tão agradável. É como já diziam, só que também vale para
o contrário: Se tu vais as 4, desde as 3 terei saudades.
segunda-feira, 20 de agosto de 2012
domingo, 5 de agosto de 2012
Indefinível
Certas características não se definem. Apenas se olha para a
mulher e sabe imediatamente: essa gosta, ah gosta. Mas é impossível isolar a
causa dessa característica tão distinta, não é possível encontrá-la
fisicamente, ou psicologicamente, ela apenas está ali, todos sabem, mas ninguém
sabe por que ou aonde. Talvez seja transmitido por um olhar, ou por um gesto.
Por uma palavra, um sotaque, um jeito de sorrir. Por uma peculiaridade, uma
covinha que se forma , sardinhas, olhos sorridentes. E funciona como um
contrato social, tal característica nunca será comentada, mas é tão aparente
que é quase palpável. Comentá-la ou trazer a tona seria uma tragédia, faria com
que ela sumisse, ofenderia a sua portadora e o restante da humanidade por ter faltado
com um costume milenar. E saber sobre esse contrato social é também
indefinível. Não se aprende na escola, não é uma lição dos pais ou dos mais velhos,
jamais isso será comentado. Mas se quebrado, ah o violador certamente receberá
os olhares de censura de todos os estratos sociais, sexos, idades e profissões.
É o dito pelo não dito. Elas por elas.
Subentendido. Implícito. Desinencial. Indefinível.
quarta-feira, 13 de junho de 2012
Sinestesias
Azul
Ondas do mar. Céu de verão.
Vestido da morena esvoaçando na brisa quente e deixando-se ver parte de sua
calcinha. Menino deixando o sorvete cair na calçada. Fim de tarde. Listras do
maiô da rapariga nos anos 50 na orla, enquanto sorria e levantava levemente os
óculos de sol com as maçãs salientes do rosto. Olhos de um rapaz trabalhador que
se confundem com a cor do mar. Sofá da casa de praia que ficava coberto por uma
manta cor de areia enquanto a casa ficava fechada. Capa dura de um livro
antigo, meio gasto, perdido no alto da estante de madeira. Fileira de fuscas
estacionados na orla de Copacabana, enquanto passam seus donos bronzeados pelo
sol escaldante, vestindo apenas peças brancas. Pintor usando apenas um macacão
jeans sobre uma escada, pintando as paredes de uma casa, sob o sol. Montanhas
vistas de muito longe, cada uma com uma tonalidade em degradé. Caneca de café.
Pedra do colar da avó, guardado há gerações num estojo de veludo. Papel de
parede de uma família americana nos anos 60, com uma geladeira colorida para
combinar com o tema futurístico. Capa de chuva daquelas muito finas que se
desmancham na chuva.
segunda-feira, 11 de junho de 2012
Aos extremistas
E um dia, ela saiu
insatisfeita, mas sabia que iria voltar. Saiu e virou a esquina. Uma multidão
de rostos, roupas coloridas, corpos salientes, sorrisos e gargalhadas a invadiu
e a atravessou como se não estivesse mesmo ali. A cada cor palpitante que passava,
evadia-se da sua alma aquele cinza morno que parecia nunca mudar, nunca
deixa-la, nunca sair. Sentiu-se incendiar. E por puro ato de masoquismo, alguns
achariam, quis mais incêndio, quis mais dor, mais amor, mais tristezas
devastadoras, mais paixões que machucavam, mais felicidade divina que não
acreditava existir. Naquela hora, sentiu o peso de uma vida de conhecimento que
negou por tanto tempo. Ah, a comodidade lhe fizera tanto bem, mas aquele bem
tranqüilo, que entorpece, que faz a vida passar enquanto você a observa.
Naquele momento, não sabia se iria voltar. Levada pelos pensamentos, como mãos
que a empurravam em direção a um destino que desconhecia, atravessou a rua e
sentiu a areia fria tocar seus pés. Cada sensação arrebentava seu corpo como se
não sentisse há muito tempo. Sentiu o frio da areia gélido, sentiu as cores
explodindo no por do sol, por trás do escuro amedrontador de uma colina, sentiu
uma vida por trás de cada luz das casas que conseguia ver, uma combustão em
cada pessoa que passava por ela, sentiu a força por trás das ondas que teimavam
em rebater-se na orla, a energia vívida de batalhador do vendedor de cocos, a
melodia deliciosa de uma música ao longe. Sentiu-se apaixonar por cada sensação
única que sentia naquele momento e por todas aquelas que viriam em seguida. Não
queria voltar nunca mais para aquele entorpecimento, queria exaurir cada
segundo e cada respiração que dava. E, neste momento, soube que não iria
voltar. Iria adiante. Sempre adiante. Iria correr e agarrar a vida, que passava
tantas vezes enquanto ela apenas olhava sem se mexer.
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