segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O último dia



               Era seu último dia de trabalho. Descia a mesma rua que descera por tantos anos, no mesmo trajeto que tecia desde o primeiro dia. Via as mesmas lojas, os mesmos camelôs, ouvia os mesmos gritos de vendedores e sentia os mesmos cheiros das frutas frescas da mercearia da esquina. Via os mesmos trabalhadores indo apressados para seus serviços, com suas maletas na mão, relógios no pulso e rostos de preocupação. Descia a rua e olhava para o céu, olhava pelo entorno, reparando pela primeira vez que em cima das tantas lojas daquela rua existiam sobradinhos, idênticos, apertados um entre o outro, cada um de uma cor. A mercearia da esquina se localizava numa construção com cara de muito antiga,e era curioso ali ter se instalado uma venda de frutas. Pensou que outrora ali poderia ter sido um glorioso salão de festas, justa tal extensão, onde tocavam bandas de jazz e cantoras soltavam sua voz, por trás de vestidos justos e brilhantes. Ao lado da mercearia, reparou numa loja de móveis usados, onde haviam criadinhos de madeira surrados, com belos puxadores. Pensou nos casarões das antigas famílias aristocratas, senhores de terras no Brasil, em que a dama escolhera a mobília em uma viagem pelo Velho Continente que virara noticia por entre todas as famílias brasileiras. Pensou em como uma viagem dessas era literalmente coisa fina no passado. Imaginou seus serviçais negros presos em roupas brancas já gastas limpando o criadinho onde a Senhora guardava suas jóias, que herdara de sua mãe. Atravessou a rua, deixando para trás tantas memórias que acabara de criar. Caminhava pela beira do rio, que julgou mais cheio e imponente que jamais vira, sentindo a brisa quente do verão em seu rosto. Sentiu uma folha cair em seu ombro, e lançou seu último olhar para a quaresmeira frondosa que guarnecia a beira do rio. O reflexo do sol na água. O verde da vegetação da várzea. Nunca este trajeto lhe trouxera tantas sensações. Quando finalmente chegou lá, via em cada rosto que julgava indiferente, o olhar da saudade e da perda, e sentia vontade de abraçar todos, até os funcionários que antes lhe passavam desapercebidos. Sentiu uma nostalgia, mas uma nostalgia de algo que ainda nem mesmo se acabara. Sentiu aquela saudade por antecipação, de quando se sabe o que vai acontecer, e acaba sentindo como se já tivesse acontecido. Nunca aquela caminhada lhe aflorou tantos sentimentos. Nunca aquelas pessoas foram tão unicamente importantes. Nunca aquele local foi tão agradável. É como já diziam, só que também vale para o contrário: Se tu vais as 4, desde as 3 terei saudades.



domingo, 5 de agosto de 2012



Indefinível

Certas características não se definem. Apenas se olha para a mulher e sabe imediatamente: essa gosta, ah gosta. Mas é impossível isolar a causa dessa característica tão distinta, não é possível encontrá-la fisicamente, ou psicologicamente, ela apenas está ali, todos sabem, mas ninguém sabe por que ou aonde. Talvez seja transmitido por um olhar, ou por um gesto. Por uma palavra, um sotaque, um jeito de sorrir. Por uma peculiaridade, uma covinha que se forma , sardinhas, olhos sorridentes. E funciona como um contrato social, tal característica nunca será comentada, mas é tão aparente que é quase palpável. Comentá-la ou trazer a tona seria uma tragédia, faria com que ela sumisse, ofenderia a sua portadora e o restante da humanidade por ter faltado com um costume milenar. E saber sobre esse contrato social é também indefinível. Não se aprende na escola, não é uma lição dos pais ou dos mais velhos, jamais isso será comentado. Mas se quebrado, ah o violador certamente receberá os olhares de censura de todos os estratos sociais, sexos, idades e profissões.  É o dito pelo não dito. Elas por elas. Subentendido. Implícito. Desinencial. Indefinível.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Sinestesias



Azul

Ondas do mar. Céu de verão. Vestido da morena esvoaçando na brisa quente e deixando-se ver parte de sua calcinha. Menino deixando o sorvete cair na calçada. Fim de tarde. Listras do maiô da rapariga nos anos 50 na orla, enquanto sorria e levantava levemente os óculos de sol com as maçãs salientes do rosto. Olhos de um rapaz trabalhador que se confundem com a cor do mar. Sofá da casa de praia que ficava coberto por uma manta cor de areia enquanto a casa ficava fechada. Capa dura de um livro antigo, meio gasto, perdido no alto da estante de madeira. Fileira de fuscas estacionados na orla de Copacabana, enquanto passam seus donos bronzeados pelo sol escaldante, vestindo apenas peças brancas. Pintor usando apenas um macacão jeans sobre uma escada, pintando as paredes de uma casa, sob o sol. Montanhas vistas de muito longe, cada uma com uma tonalidade em degradé. Caneca de café. Pedra do colar da avó, guardado há gerações num estojo de veludo. Papel de parede de uma família americana nos anos 60, com uma geladeira colorida para combinar com o tema futurístico. Capa de chuva daquelas muito finas que se desmancham na chuva. 

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Aos extremistas



 E um dia, ela saiu insatisfeita, mas sabia que iria voltar. Saiu e virou a esquina. Uma multidão de rostos, roupas coloridas, corpos salientes, sorrisos e gargalhadas a invadiu e a atravessou como se não estivesse mesmo ali. A cada cor palpitante que passava, evadia-se da sua alma aquele cinza morno que parecia nunca mudar, nunca deixa-la, nunca sair. Sentiu-se incendiar. E por puro ato de masoquismo, alguns achariam, quis mais incêndio, quis mais dor, mais amor, mais tristezas devastadoras, mais paixões que machucavam, mais felicidade divina que não acreditava existir. Naquela hora, sentiu o peso de uma vida de conhecimento que negou por tanto tempo. Ah, a comodidade lhe fizera tanto bem, mas aquele bem tranqüilo, que entorpece, que faz a vida passar enquanto você a observa. Naquele momento, não sabia se iria voltar. Levada pelos pensamentos, como mãos que a empurravam em direção a um destino que desconhecia, atravessou a rua e sentiu a areia fria tocar seus pés. Cada sensação arrebentava seu corpo como se não sentisse há muito tempo. Sentiu o frio da areia gélido, sentiu as cores explodindo no por do sol, por trás do escuro amedrontador de uma colina, sentiu uma vida por trás de cada luz das casas que conseguia ver, uma combustão em cada pessoa que passava por ela, sentiu a força por trás das ondas que teimavam em rebater-se na orla, a energia vívida de batalhador do vendedor de cocos, a melodia deliciosa de uma música ao longe. Sentiu-se apaixonar por cada sensação única que sentia naquele momento e por todas aquelas que viriam em seguida. Não queria voltar nunca mais para aquele entorpecimento, queria exaurir cada segundo e cada respiração que dava. E, neste momento, soube que não iria voltar. Iria adiante. Sempre adiante. Iria correr e agarrar a vida, que passava tantas vezes enquanto ela apenas olhava sem se mexer.